Havia chovido forte àquela tarde. Tão forte que algumas ruas
estavam alagadas, mostrando como a cidade ainda sofria de problemas tão
rotineiros. “Normal”, pensou o Eremita. “Cidades, no final das contas sofrem
dos mesmos problemas, seja aqui ou em outra parte do mundo.” Isso o manteve
pensativo por alguns momentos, até ver a construção à sua frente.
Era um posto de gasolina, ali próximo da Praça Dorothy Stang.
Havia um certo movimento ali que provavelmente devia ser normal. Carros iam e
vinham, abastecendo o tanque para seguirem seus caminhos rumo a algum lugar que
o Eremita ainda desejava descobrir. Ao lado havia uma loja de conveniência, que
exibia um movimento tímido. Entrou, esperando achar um banheiro em algum lugar.
Lá dentro, o ar frio era opressor, porém o ambiente era todo
planejado para ser agradável: Luzes fluorescentes refletiam nas paredes
brancas. Havia uma mesinha bem no meio das gondôlas onde estavam dois rapazes
bebendo uma cerveja e conversando sobre algo que não fazia o menor sentido. O Eremita
olhou para o lado e viu refrigeradores em que os refrigerantes e cervejas
ficavam. Engoliu em seco ao ver uma Glacial solitária lá dentro. Quanto tempo
tinha? Fazia meses que não bebia álcool
e uma vontade enorme se apoderou de seu ser. Tateou os bolsos em busca de algum
dinheiro, mas suas vestes estavam vazias de qualquer valor.
Então, ele se aproximou dos dois rapazes e perguntou:
- Vocês poderiam me dar um gole dessa Glacial?
Os dois rapazes se entreolharam. Eram dois rapazes jovens,
não aparentavam ter mais de vinte anos. Um deles tinha o cabelo esverdeado
enquanto o outro tinha um alargador na orelha esquerda. O rapaz do alargador
pegou a Glacial e estendeu para o Eremita.
- Bebe ai man
.
Agradecendo aos dois, o Eremita bebeu do gole da Glacial com
os olhos fechados e sentiu exatamente a mesma sensação de antes. Os dois
rapazes ficaram olhando, meio entre risadas. O do cabelo esverdeado perguntou.
-Precisa fechar os olhos pra beber uma breja?
O Eremita abriu os olhos e devolveu a lata para a mesa. Pensou
um momento e então respondeu:
-Quando se quer aproveitar a beleza do que é inútil, sim.
- Como assim a beleza do que é inútil? Tu achas que somos
inúteis?
– perguntou o rapaz do alargador.
- Vocês acham que sentar em uma mesa e beber para assim poder
conversar algo bom?
- Mas é o que todo mundo faz.
- Mas nem por isso deixa de ser inútil.
- Olha – disse o rapaz do cabelo esverdeado se empertigando
na cadeira – não estou entendendo esse teu papo.
O Eremita olhou para os dois rapazes e sorriu. E disse.
- Esse lugar, usado como local para abastecer carros, comprar
coisas e beber suas memórias é só mais uma das várias formas que as pessoas
encontraram para se esquecerem.
- Esquecerem do que? – perguntou o rapaz do alargador, interessado.
- De quem nós somos. Não precisamos de um carro para nos
locomover, não precisamos beber para conversar, não precisamos gastar dinheiro
comprando qualquer coisa que preencha. Só precisamos ser.
- Está dizendo que é inútil ser assim, fazer essas coisas?-
perguntou o rapaz do alargador.
- Sim e não. A inutilidade tem a função de evitar que tudo
seja tão serio ou demasiadamente lúgubre. O que seríamos de nós sem essas
pausas para tomar uma Glacial em um bar ou como aqui, em um posto de gasolina?
O Eremita olhou para fora, vendo a Pedro Alvares
movimentar-se como sempre.
- Precisamos de respiro, mas ele não deve ser só nosso norte.
Vocês bebem porque querem se divertir. Eu entendo. Mas resumir-se a isso não é
suficiente. Tem que haver um significado.
- Você bebe para que então?- perguntou o rapaz do cabelo
esverdeado já de cara fechada.
- Bebo para lembrar que há beleza em não fazer sentido. Que
sentido há em beber e ficar bêbado? Nenhum. O estado alcoolizado serve para
destravar certos limites e é isso que interessa, saber até onde vai o seu
limite.
O Eremita bebeu mais um gole da Glacial, agradeceu aos dois
rapazes e saiu, deixando-os ali.
“Talvez algum dia”, pensou o Eremita já andando. “Eu só
precise de mim mesmo”.
E continuou andando. Rumo ao próximo destino.